sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Em processo de construção: de Marília Gidrão por: Rubens Pileggi Sá









O que vemos e o que deixamos de ver não tem uma relação direta e unívoca com a forma daquilo que se nos apresenta. O olhar não é passivo. Ele está carregado do que somos. E somo seres que se afetam com presenças tanto quanto com ausências. E isto está além daquilo que comumente denominamos como 'belo'. Bela também pode ser uma ideia. Uma ausência pode ser tão ou mais notada quanto uma presença. Mas, às vezes, uma ausência se faz por substituição a uma presença. Assim, a ideia, além de bela, torna-se paradoxal. Ou melhor, torna-se bela por ser paradoxal!
Falo aqui de uma obra. Ou melhor, de um 'canteiro de obra'. Não, também não é um canteiro de obra. É um exercício em forma de obra, que substitui a obra, pensada para ser uma obra de arte a partir de um canteiro de obras. Que é, também, um trabalho realizado por uma aluna em sala de aula, como parte da disciplina de arte do qual sou ministrante.
Um aluno de outra disciplina abre a porta da sala de aula onde se encontra montada a peça em questão e me pergunta se vão fazer reformas no prédio. Minha mudez sem resposta ri por dentro. Ele espera um pouco, hesita, e depois se refaz, embora não muito convencido, do engano. Era como se tivesse dito: "isso não é um canteiro de obras", parafraseando Magritte, mas ele também erraria (e acertaria) ao dizer isso, pois aquilo também era um "canteiro de obras". Quem leu o pequeno livro de Foucault sabe do que estou falando, mas a diferença aqui com a obra do artista belga é que não há palavras escritas, mas signos da mesma ordem - isto é, da figuração - que entram em colapso e novamente se rearranjam para entrarem, novamente, em outro colapso. Não é uma pintura comentando sobre um objeto, mas algo tridimensional que deveria remeter a outro objeto tridimensional e, no entanto, a própria possibilidade de comparação já nos suspende o juízo da proximidade entre o real e o inventado.
O que temos, então? Um canteiro de obras que não é um canteiro de obras, mas a representação de um canteiro de obras. Mas não há obras, apenas tijolos empilhados, um balde elevado no ar suspenso por cordas e preso a outro balde, uma enxada revirando massa e pedras de brita ao chão. Esse conjunto nos leva a crer que há uma obra sendo feita, mas em outro lugar. Ou, mesmo, que ela será feita ali mesmo, mas ainda não há nada que indique sua presença. Não é assim que funciona com um canteiro de obras, na verdade? Só que aqui a falta da obra É a obra e todo seu aspecto tosco, rude, inacabado e processual concorre para que sintamos que algo falta. E é nesse faltar que o trabalho se corporifica. Que o pensamento plástico se faz conceito. A frase a ser dita é, então, "isso é uma obra", mas ela não está lá, o que temos é apenas seu indício.
Assim, não se trata de um processo de interrupção de sentidos, onde algo trai aquilo que é dito ao mesmo tempo que o afirma - como em Foucault sobre Magritte - mas de outro processo, sobre continuidade e descontinuidade de espaços. Tal intercâmbio, porém, não acontece sem que se mude o que pensamos sobre espaços, lugares e situações. O que se dá, neste caso, é que as partes que compõem o conjunto que vemos, ao se desvestirem do pedestal que separa obra e mundo, não entram no cotidiano das relações ordinárias entre coisas e coisas, afirmando um mundo sem mediação, mas mantém com esse mundo uma relação de suspensão. É isso e não é. É isso ou outra coisa, também.
Não nos deixemos enganar pelas formas, simplesmente. E, justamente elas, quando formalizadas, é que nos enganam. Afinal, não é uma operação estética suspender um balde do chão, amarrado a outro balde, formando com a corda presa a uma roldana, um ângulo reto? Oras, não há como não nos reportamos ao Construtivismo! Principalmente às esculturas de canto, de Tatlin, onde o material era apresentado em sua forma crua, atravessando os planos no espaço. Construção, Construtivismo, sim, o operário, as mãos do trabalhador. Só que aqui as mãos do trabalhador aparecem em negativo, colocadas no meio de uma pilha de tijolos. Entre a tentativa de serem algo e o desaparecimento de qualquer indício de seu trabalho na obra a ser entregue, fruto da mais-valia que a economia do capital imobiliário há de lhe tirar. No mundo da arte elas aparecem em negativo para denunciarem que no mundo do capital elas desaparecem como produto de material de construção. Continuidade e descontinuidade.
Além do balde suspenso pela corda, que forma um ângulo reto com o chão e a pilha de tijolos, também formando um ângulo reto com a quina do conjunto de peças, a última peça, a enxada, também se posiciona em ângulo. A massa que ela revolve não é o concreto, não servirá para assentar os tijolos, não irá rebocar a parede. Não há ninguém a mexer a enxada que simula um movimento de trabalho. Apenas um fantasma congelado, uma fotografia antiga de algo frio que está acontecendo, que já aconteceu e que era para ser, um dia. A massa, por fim, ao invés de estar sendo mexida pela enxada, trava seu movimento, fazendo tudo se emudecer no branco do material que a suporta. Um material que simula ser outro. Massa corrida, que é material de acabamento de obra, se passando por massa de cimento para assentar tijolos na parede de uma obra que está por se fazer, mas que já é.
Nesse arranjo desarranjado - vamos dizer assim - feito com a precisão do impreciso, porque inacabado, vislumbra-se algo que, com muito cuidado, podemos ouvir, de longe, seu sussurro a nos dizer que se trata de arte. Poderíamos até afirmá-lo veemente, tratar-se de um processo de construção artística, uma vez que podemos até nominá-la como obra instalativa e, quem sabe, até sensorial, caso o espectador resolva subir sobre o tapete de pedras de brita que dá às peças isoladas a dimensão de conjunto. Ao pisar ele irá escutar o cróck cróck das pequenas pedras escuras abaixo de seus pés. Isso talvez se pareça com arte. No entanto, a melhor situação é aquela do aluno desavisado pego na indeterminação diante daquilo que está em seus olhos. Durante o momento em que não é isso nem aquilo e, ao mesmo tempo é. Nesse momento da passagem, entre a continuidade e a descontinuidade é que a obra como um ser ausente se potencializa. Em processo de construção.

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